O autor é Elthon Costa, advogado especialista em direito desportivo e Sócio-Diretor de Relacões de Trabalho e Desporto na Todde Advogados |
Ao longo de décadas, os principais clubes do futebol brasileiro promoveram um festival de aberrações administrativas, que seriam inadmissíveis e até fatais em qualquer outro setor econômico. Como associações sem fins lucrativos, desfrutavam de isenções fiscais que pareciam servir de concessão para cuidar das próprias contas com uma boa dose de ousadia desmesurada.
Usando o descaso financeiro como estratégia de gestão para alcançar objetivos políticos ou econômicos pessoais, muitos dirigentes chegaram a ser tratados como ídolos pelos torcedores dos clubes, puramente por conseguirem converter em títulos o processo de endividamento interno. Diferentemente do campo de jogo, fora das quatro linhas não havia um adversário a ser batido, mas em regra o esquema tático mais usado era o de pagar primeiro aos bancos e jogar as dívidas trabalhistas para debaixo do tapete.
Foi essa forma de gestão, capitaneada por presidentes signatários de cheques em branco e por diretores de futebol que aderiam à megalomania do seu contratante, que fez com que os 25 principais clubes de futebol do país acumulassem um endividamento líquido total de R$ 10,14 bilhões em 2021, de acordo com levantamento da empresa de consultoria Ernst & Young.
Nos últimos 20 anos, houve algumas tentativas do Estado de dar amparo aos clubes, oferecendo condições de pagamento desse passivo. Dentre elas, a Timemania, uma modalidade de loteria criada para saldar as dívidas, e o Refis, um programa de refinanciamento dos débitos com a Receita Federal. Ainda que tenham sido ideias significativas, não serviram para abolir o modelo falimentar levado a cabo pelos dirigentes. Tanto que as dívidas não apenas não foram reduzidas, como continuaram crescendo desde então.
Esse breve histórico evidencia, portanto, que a mudança necessária é na adoção de gestões pautadas na governança e no compliance dentro dos clubes de futebol. E é justamente essa mudança de perspectiva, que coloca os resultados esportivos como uma consequência da solidez institucional, que pode ser exaltada na Lei 14.193/21 – a Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF).
Ela preconiza a entrada de investidores nos clubes de futebol, formando, junto com a associação, sociedades anônimas que abandonam o modelo associativo para atuar como empresas. O principal mérito da lei é sua capacidade de fazer um cerco à SAF de modo a coibir um novo ciclo de modelos fracassados das associações. Aliás, ao contrário, dá prazo de até 10 anos à sociedade anônima para quitar as dívidas da associação, sob o risco de o investidor assumir a responsabilidade pelos passivos.
As primeiras experiências com a nova lei vêm sendo observadas de maneira positiva no modelo de gestão implementado no Cruzeiro, cuja dívida chegou a extrapolar a casa de R$ 1 bilhão. Percebe-se uma equipe de gestores mais preocupada em renegociar o passivo e adequar o clube à sua realidade financeira do que em contratar jogadores à revelia. O Botafogo, agora do bilionário americano John Textor, vem com a proposta de fazer contratações mais robustas, mas sem deixar de lado sua preocupação com a folha de pagamentos e a redução das dívidas.
Num curto prazo, é possível antever que até mesmo as associações que ainda não aderiram ao modelo profissional proposto pela Lei da SAF deverão ao menos se dar conta de que a priorização da sua saúde financeira será um primeiro passo para um futuro mais vencedor. Com os débitos quitados, sobra dinheiro e organização para trazer jogadores de peso, que por sua vez trarão títulos, apoio da torcida e, por consequência, mais receitas. A fórmula do empreendedorismo pode moralizar de vez o nosso futebol.
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